Artículo publicado en el diario portugués Publico, 29/09/2013
Nas actuais deliberações do Tribunal Constitucional alemão sobre se o programa de compra de dívida do BCE está de acordo com a sua Constituição, coloca-se uma questão mais decisiva do que a legalidade dessa intervenção. A questão de fundo não é saber se estas operações implicam sub-repticiamente as dívidas de maneira a que os contribuintes alemães paguem as dívidas dos outros; tão-pouco se trata de determinar se as medidas de salvação contradizem a proibição expressa no Tratado de Lisboa ou se foram adequadas face à natureza excepcional da crise.
O que em última instância se dirime é qual é a forma de democracia apropriada para a União, se a temos de pensar e configurar conforme o modelo do Estado nacional e quem tem a legitimidade para assegurar que tudo se faça de acordo com critérios democráticos.Os precedentes sobre isto não são muito animadores. O Tribunal Constitucional alemão, desde o seu acórdão sobre o Tratado de Maastricht até ao de Lisboa, foi desenvolvendo uma doutrina que desequilibra a dupla legitimidade da União a favor dos Estados. Os juízes propõem nos seus acórdãos um controlo nacional do processo de integração europeia para evitar que este possa provocar a erosão do sistema democrático alemão. O princípio que sustenta as sentenças é que o Estado nacional é “o âmbito político primário no qual se realiza a comunidade”. Esta doutrina foi-se expandindo e há sentenças similares na Polónia, República Checa, Portugal ou Estónia. Esta está conceptualmente errada, mas também de um ponto de vista normativo e prático. Em primeiro lugar, argumentar deste modo supõe, no plano conceptual, entronizar a democracia que se configurou à volta dos Estados nacionais como a única forma possível ou a forma exemplar de convivência democrática, mas não oferece nenhuma indicação sobre como temos de pensar nas transformações da democracia desde o momento em queesses Estados substituem a sua soberana autarcia por lógicas de integração. Para o Bundesverfassungsgerocht, a democracia nacional é o critério de valoração da democraticidade da União, o que tem uma intenção descritiva, de constatar um facto, mas também, indirectamente, um valor performativo: não pode haver uma democracia para lá do âmbito estatal. No fundo, os seus juízes estão a dar a entender que só pode haver democracia com um demos nacional, o que está longe de ser evidente. Pressupõem que a democracia só é possível de acordo com o modelo de democracia parlamentar associado ao Estado nacional soberano e que apenas no espaço nacional se realiza o tipo de confiança e solidariedade que se exige para sustentar uma entidade política democrática.
Do ponto de vista normativo e prático, as suas exigências resultam contraditórias, já que, por um lado, a sua perspectiva é demasiado interna, ao mesmo tempo que condiciona demasiado as relações da Alemanha com o processo europeu. Na sentença sobre o Tratado de Maastricht, estabelece-se que os actores soberanos estrangeiros não podem pretender um valor superior ao direito democraticamente legitimado (ou seja, legitimado a nível nacional). Mas o que é que acontece se dermos a volta ao argumento? Resultaria então o princípio de que os Estados constitucionais não podem impor unilateralmente pesos aos seus vizinhos. Ao arrogar-se a função de controlar a democraticidade dessa nova lógica que se configura com o processo de integração, a Alemanha apresenta exigências unilaterais aos seus parceiros europeus, exigências formuladas como se houvesse uma perspectiva que permitiria à Alemanha pensar-se — ainda que só no momento do juízo de constitucionalidade — fora da União. Imaginemos o efeito cascata e o bloqueio sobre o funcionamento das instituições comuns, e também o facto de todos os Estados se sentirem na mesma obrigação de condicionar a democraticidade das decisões comunitárias.
As sentenças parecem ignorar também a que necessidades práticas responde a integração, que possibilidades abriu e até que ponto depende a Alemanha — como os demais Estados-membros — do espaço de acção europeu. Dá a entender que estamos perante um jogo de soma zero entre legitimidades diferentes, como se não tivesse havido um ganho de espaços e de possibilidades de acção para todos os Estados graças à integração transnacional. O Tribunal Constitucional alemão coloca, em definitivo, a questão da democracia de um modo unilateral a favor do controlo nacional, ao mesmo tempo que ignora a outra face da moeda: que a existência de instituições capazes de agir para além do Estado nacional corresponde a uma necessidade democrática. O processo de integração dotou os Estados-membros de espaços de acção aos quais não teriam chegado por si mesmos ou que lhes escapavam. Esses espaços não são meros suplementos ou próteses que se juntam a Estados “completos”, deixando intacta a sua constitucionalidade. Por isso mesmo, a construção dos deveres e responsabilidades desses âmbitos gerais para a integração não pode ser levada a cabo pela vigilância dos seus tribunais constitucionais. Que sentido tem deixar a determinação da democraticidade da integração europeia nas mãos de um Estado (ou de todos) que entrou na lógica da integração precisamente porque reconhece que não é capaz de assegurar por si só a garantia de determinados bens democráticos aos seus cidadãos? O desenvolvimento futuro da democracia na União Europeia não pode ser assegurado a partir do controlo de constitucionalidade de um dos seus Estados-membros, nem sequer pelo espaço deintergovernamentalidade constituído por todos eles na sua função de “garantes dos tratados”. Tendo em conta o carácter de identidade política complexa e composta que é a União Europeia, a sua democraticidade tem de ser pensada de uma maneira original no equilíbrio do intergovernamental e do transnacional, equilíbrio que actualmente deve ser recuperado com uma maior ênfase nas instituições comuns. A construção europeia deve respeitar a peculiaridade política que a União representa, a sua lógica, a sua inovação institucional e a sua complexidade. A questão não deveria ser se é completamente democrática, mas sim se é adequadamente democrática, dado o tipo de entidade que consideramos que é. Ou pensamos as exigências democráticas de acordo com as especificidades da União ou estaremos a transferir indevidamente categorias de um nível para outro, o que não é aplicável sem uma profunda transformação. A Europa não pode reduzir-se a alternativas simples: Estados ou integração, o supranacional contra o intergovernamental, o comum ou o próprio… Mas não há dúvida de que para responder adequadamente aos actuais desafios é necessário conceder um maior protagonismo às instituições comuns da decisão face às instituições da agregação.